Daniel cresceu no bairro Redenção, em São Carlos, num sobrado simples de paredes descascadas, mas cheio de dignidade. Filho de um pedreiro e de uma auxiliar de cozinha, aprendeu cedo o valor do esforço e da honestidade. Sonhava alto. Estudou na ETEC Paulino Botelho, onde descobriu seu gosto por exatas e sua habilidade em transformar cálculos em soluções. Aprovado na UFSCar para Engenharia de Produção, fez da universidade não apenas um trampolim, mas um símbolo de que tudo era possível com trabalho e fé. 4f4q9
Foi nessa fase que conheceu Ana Clara, estudante do tradicional Colégio São Carlos, morava na Vila Nery, depois caloura em Medicina na USP de Ribeirão Preto. Tinham visões diferentes do mundo, mas uma iração mútua que cresceu em silêncio até se transformar em amor. Daniel era pé no chão com cabeça nas nuvens; Ana Clara, determinada e prática, mas com um coração aberto para quem a ouvisse com atenção.
Namoraram por dois anos, daqueles amores de juventude que ardem rápido e com brilho intenso. Mas a vida — com suas curvas inesperadas — os levou por caminhos distintos. Daniel aceitou uma proposta para trabalhar em uma planta industrial no Rio Grande do Sul. Ana Clara seguiu sua vocação nos corredores do Hospital das Clínicas em Ribeirão Preto. Cada um casou, teve filhos, construiu uma história que parecia definitiva.
Até que a vida deu outra volta.
Daniel, desiludido após o fim de um casamento que já não falava a mesma língua dos seus sonhos, voltou a São Carlos. Era fim de tarde quando subia a rua Ruy Barbosa em seu carro, ouvindo uma música antiga do Skank no rádio, quando outro veículo cruzou o sinal de PARE e atingiu com força sua lateral. Seu carro foi lançado contra um poste. Tudo apagou.
Na Santa Casa, ele precisou de uma cirurgia delicada. A equipe médica de Ribeirão foi acionada, e o destino — esse velho autor de enredos improváveis — escalou Ana Clara para o procedimento. Quando entrou na sala e viu Daniel entubado, ferido, cercado por fios e monitores, o chão pareceu sumir sob seus pés.
Respirou fundo, tentou manter o protocolo, mas não era mais só um paciente. Era Daniel.
Fez o que precisava ser feito, com excelência e zelo, como aprendeu nos anos de residência. Mas seu coração estava em guerra. Os dias seguintes foram uma mistura de lembranças e olhares cruzados nos corredores frios do hospital. Quando foi vê-lo, ainda grogue de analgésicos, Daniel sorriu fraco.
— Você ainda tem aquele jeito de franzir a testa quando está preocupada… — ele disse, num sussurro.
Ana Clara riu. E naquele instante, não havia mais bisturis, diplomas, culpas ou distâncias. Havia dois corações ainda aprendendo a sobreviver.
Decidida, ela pediu transferência para o hospital de São Carlos. Queria ficar por perto. Talvez retomar o que o tempo deixou em pausa.
Mas quando chegou à ala dos internados, a cama de Daniel estava vazia. Uma parada cardíaca durante a madrugada silenciou para sempre aquele sonho mal refeito.
Ana Clara congelou diante da ausência. Chorou como não chorava desde a morte do pai. Nos dias que se seguiram, permaneceu no hospital, trabalhando em silêncio, com a alma em frangalhos. Nunca mais foi a mesma. As pessoas diziam que ela parecia mais humana, mais próxima. Mas ninguém sabia que parte dela havia ficado em uma cama de hospital, ao lado de um amor antigo que voltou tarde demais.
Às vezes, nas noites longas do plantão, ela olhava para o céu e se perguntava o que teria acontecido se tivesse sido mais cedo. Mas nunca teve resposta.
E assim seguiu, vivendo e cuidando dos outros — como Daniel sempre dizia que ela faria — com uma cicatriz que o tempo jamais fechou.
*Um conto do dia dos namorados.